

CAPÍTULO 15

Foto: Anderson Valentin, FAVELAGRAFIA
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“Vida louca, vida breve,
Já que eu não posso te levar
Quero que você me leve.”
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Cazuza - Vida Louca
Na volta às aulas, notei que minha fama de violeiro tinha entrado no radar da turma dos aspirantes a músico. Naqueles anos de rock and roll, eram uma casta importante da escola. Sabia que havia vários grupos que se encontravam regularmente para levar um som e não via a hora de fazer parte. No início, talvez por desconhecerem qual era a minha, impuseram uma distância, mas fui me aproximando de mansinho e quando finalmente me convidaram fiquei para lá de amarradão. Nas sessões, ficou claro que todos eram igualmente iniciantes e ávidos para aprender uns com os outros. O rock era o mínimo denominador comum, mas ninguém tinha nada contra improvisos mais próximos do jazz, do rock progressivo e de ritmos brasileiros. Paradoxalmente, enquanto era visto como um estrangeiro que teoricamente seria roqueiro, meu interesse estava mais para o batuque e a batida da bossa do que para a guitarra distorcida que eles gostavam tanto.
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A turma que me acolheu se encontrava na casa do Fernando, ou Fefo, que morava numa cobertura de dois andares no Leme, com uma vista fantástica para a praia de Copacabana. Por algum motivo, ele e seu irmão mais velho viviam sem os pais, o que fazia daquele apartamento uma zona livre. Todas as quintas, com a desculpa de ir estudar, a gente se reunia para tocar num quarto reservado para tal. O espaço era amplo, cheio de almofadas confortáveis espalhadas pelo chão de madeira. Júlio, o irmão do Fefo, já tinha uma banda, para nós um motivo de grande respeito. Um dos membros guardava seu amplificador ali, que funcionava como único móvel do quarto. Sempre coberto de pontas de cigarro, copos sujos e garrafas de cerveja vazias, dava um ar roqueiro ao nosso ponto de ensaio.
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As sessões começavam com a gente mostrando as últimas músicas e riffs que tínhamos aprendido ou criado na semana. Quando os outros gostavam, todo mundo ia atrás, dando ideias e adicionando o que podiam. A atitude era parecida com a que tínhamos em relação ao futebol – aquilo era uma pelada musical. Queríamos aprender e curtir, sem nenhuma pretensão de formar uma banda... mas quem sabe um dia?
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Conforme a coisa foi evoluindo, passamos a ir com mais frequência. Nos fins de semana, Júlio e seus amigos apareciam e o apartamento lotava. Eles tocavam melhor e sempre traziam uma fartura de bagulho bom. Antes de qualquer coisa, enrolavam uns baseados tão gigantescos que só davam para pilar com o dedo. Quando aqueles charutos terminavam, vinha uma chapação que parecia durar uma eternidade. Ficávamos estatelados feito zumbis, vendo seu cachorro, Pepe, balançando o rabo, latindo e nos cutucando como que tentando nos trazer de volta a vida. Volta e meia alguém soprava a fumaça para dentro da sua fuça para ver se sossegava, mas, que me lembre, nunca funcionou.
Com um esforço sobre-humano, alguém finalmente conseguia se arrastar até o quarto da música que ficava ao lado. Um ou dois iam atrás e começavam a tocar alguma coisa. Aos poucos todos iam entrando e pegando instrumentos. Com energias renovadas, atingíamos zonas de inspirações esotéricas de onde surgiam uns sons louquíssimos. Algumas criações faziam a moçada ir ao delírio, outras faziam a gente cair na gargalhada. Segunda feira, na escola, ninguém conseguia se lembrar ou reproduzir nada que tinha acontecido, só sabíamos que tinha sido muito bom. Coisas da madame Cannabis Sativa.
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Ao longo daquele ano, quase que sem perceber, entramos na zona de doidões da escola; malditos, porém respeitados pelo espírito livre e contestador. Havia os menos simpáticos, para quem éramos um bando de porra-loucas fadados a se dar mal na vida, mas e daí? Quem estava falando eram eles ou o medo de levar porrada dos pais? Ainda que não nos víssemos como nem uma coisa nem outra, os considerávamos caretas. Acreditávamos que, ao contrário deles, havíamos descoberto a fórmula de gozar a vida sem paranóias burguesas. Independentemente de estarmos certos ou não, a divisão era clara e ninguém era de ficar em cima do muro.
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Conforme as diferenças foram aumentando, nossa própria subcultura foi surgindo. Nela, quem tinha a moral de comprar maconha na favela, atingia um status elevado. Curioso, resolvi ver qual era. A primeira boca de fumo que visitei foi no Cosme Velho, conhecida como “os trilhos”, na ladeira do Cerro Corá. Ficava logo no começo da linha do bonde que levava turistas ao Corcovado. No dia, todo mundo tinha contribuído com alguma grana, mas fomos somente eu, o Juca e o Pitéo, um cara do ano acima que já tinha ido lá e sabia como lidar com o pessoal do “movimento” - ou pelo menos dizia que sabia.
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Descemos no ponto final da linha 571, perto da entrada para o Túnel Rebouças e fomos. Na esquina, o Pitéo pediu para a gente dar o dinheiro e ficar esperando ali.
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Meio brincando e meio nervoso falei, “Qual é Pitéo? Vai fugir com a nossa grana?”
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“Não é isso, mané, os caras me conhecem e não gostam de muita gente chegando ao mesmo tempo.” Ele tinha se ofendido. “Quer saber de uma coisa, fica com essa porra! Quando os caras descererem para entregar a parada, a gente paga.”
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Depois disso, subiu a ladeira e sumiu na curva. Ficamos esperando por uns dez minutos que pareceram uma eternidade. Ele voltou nervoso, dizendo que o “vapor” estava vindo logo atrás e que tínhamos que dar a grana agora. Logo depois, um mulato magro de short, chinelo e sem camisa apareceu na curva, olhou para a gente e fez um sinal. Pitéo subiu lá e passou o dinheiro discretamente. Em contrapartida, o cara olhou em volta, tirou os papelotes de dentro da cueca e os entregou ao nosso colega. Depois da transação, o cara subiu apressado e o Pitéo desceu fingindo ser um morador tranquilo do bairro. Quando chegou, abriu a mão sem falar nada e mostrou as trouxinhas. Cada um pegou a sua, atravessamos a rua apressados e subimos no ônibus nos sentindo soldados voltando de uma operação bem-sucedida.
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O risco daquela incursão me deu uma infusão de adrenalina e queria mais. A partir dali, frequentemente era eu quem ia comprar para o pessoal. Ia lá uma vez por mes e passei a conhecer um ou dois caras do movimento de vista. Um dia, o "vapor" de plantão disse que não tinha nada.
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“Tá a maior seca, meu irmão!”
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Cocei a cabeça, já imaginando a galera decepcionada comigo. Queria fazer bonito com a Soninha, uma menina nova no grupo, em quem estava de olho.
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Havia dois outros “fregueses” na mesma situação. Um deles perguntou: “E no Morro dos Prazeres? Será que tem?”
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“Lá é capaz de ter, eles estão esperando um carregamento do bom, mas não tenho certeza se chegou ainda.” O cara olhou para cima e apontou para o mato do outro lado do vale. “É lá em cima daquele morro, vocês sabem como chegar lá?”
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Um dos outros dois respondeu: “Eu sei, bora lá?”
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“Bora!”
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A gente virou e agradeceu. “Valeu pelo toque, meu irmão!”
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“Valeu! Na semana que vem volta aqui que tem.”
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Descemos os trilhos e fomos rumo ao morro, do lado oposto do trânsito. Cruzamos a rua e depois que a calçada acabou, tomamos uma trilha que seguia ao longo do tráfego pesado em direção ao Túnel Rebouças e que depois adentrava mato acima. Subimos até o topo do morro e saímos num campo de futebol onde uns garotos estavam batendo bola. Cruzamos o campo e por saberem o que a gente estava fazendo ali, continuaram com a sua pelada sem nos dar atenção. Dali, passamos por entre os barracos até chegarmos no final de uma viela. Do alto dos telhados à nossa volta, um pessoal da nossa idade mantinha a guarda. No fim do beco, havia um descampado e um barraco de frente para o mato. Um mulato alto e magricelo com um revólver na cintura saiu para falar com a gente.
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“Aê playboys, estão procurando alguém?”
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Tentando disfarçar a apreensão, dissemos da maneira mais calma possível que queríamos comprar cinquenta gramas.
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“Ah, é pra isso!” Já dava para ver que o cara estava chapado e adorando tirar uma onda com a nossa cara. “Espera aí.”
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Ele voltou para a porta do barraco e gritou para alguém que estava lá dentro: “Aê, Geraldo, tu já separou aquele tijolo?”
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A voz gritou de volta. “Ainda não, o patrão falou que só precisava para hoje à noite.”
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“Hoje à noite não dá, mané, já tem freguês aqui.”
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Ele virou para nós fazendo um gesto para a gente esperar e entrou no barraco. Dois minutos depois, voltou com um baseado enorme na boca e um tablete de dois quilos da coisa debaixo do braço. Era maior do que vários tijolos de alvenaria juntos – a maior quantidade do produto que já tinha visto na vida.
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“Isso chegou hoje de manhã, é paraguaio, prensado, bom pra caralho. Já viu tanta maconha junto?” Ele levantou a mão calejada e ofereceu o cigarro improvisado. “Experimenta aí para ver!”
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Não dava para recusar, inclusive por educação. Era verdade, era do bom e imediatamente sentimos o efeito, mas o medo era demais para relaxarmos a guarda. “Pode crer, é do bom!”
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Enquanto fomos passando o cigarro artesanal, ele foi separando nossa parte no olho.
“Isso aqui é cinquenta gramas. É para dividir por três?”
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A gente se olhou e concordou que sim. Depois que os papelotes estavam prontos, entregamos o dinheiro.
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Ele gritou para dentro: “Aê, patrão, os fregueses pagaram, quer conferir?” Ele se virou para nós e levantou as sobrancelhas como se dissesse que aquilo era chato, mas tinha que ser feito.
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Um cara mais velho, negro e mal-encarado, saiu do barraco e sem falar uma palavra contou o dinheiro e verificou se os pedaços para a gente estavam certos.
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“Tá tudo certo, pode liberar.” Já com a grana na mão, pegou o baseado, deu uma baforada e relaxou. “Vocês se deram bem! Essa porra aí chegou fresquinha hoje de manhã e é boa pra caralho.” Ele se voltou para mim e deu uma risada. “Olha só a cara desse maluco, já tá doidão!”
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Depois daquela confraternização, colocamos os papelotes na cueca e fomos embora. Passamos pelos becos de terra batida separando as paredes precárias dos barracos. Apesar de ser minha primeira vez numa favela, não fiquei com medo como achei que ficaria. Por causa do efeito e da descontração do encontro, os moradores e o local pareciam familiares e passamos desapercebidos.
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Quando saímos, percebi que estávamos no bairro às margens da Floresta da Tijuca, Santa Teresa. O ponto final dos seus famosos bondes ficava bem em frente da saida da favela. Subimos num deles, e assim que o motorista e o cobrador entraram, partimos rumo ao Centro da Cidade. O sol estava se pondo enquanto o carro velho e amarelo chacoalhava nas ruas de paralelepípedo. O odor doce das árvores flutuava por entre seus bancos de madeira enquanto passávamos pelas casas coloridas que caracterizam o bairro histórico.
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Por estar de novo em estado de graça, me sentindo de férias, lembrei da Gê e fiquei com saudades. Depois que o bondinho atravessou os arcos da Lapa e chegou ao seu destino final, seguimos cada um para o seu caminho pela selva de concreto.
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