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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 11

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Foto: Pinterest (domínio público)

“...Eu fico contente da vida

Em saber que a Bahia é Brasil.”

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Denis Brian – Bahia com H

Conciliar o sonho de uma vida idílica num paraíso exótico com a responsabilidade de criar filhos, foi mais difícil do que Rafael e Renée imaginavam. Agora, com um deles decidido a ser diretor de cinema a coisa complicou ainda mais. Apesar de terem quebrado vários moldes com seu casamento pouco convencional, esperavam por uma prole padrão. O investimento pesado em educação era para gerar um herdeiro médico, engenheiro, advogado ou algo parecido e não um menino sonhador. Agora, ansiosos pela escolha precoce e um tanto irrealista e sem saber nada sobre o assunto, os dois fizeram o melhor que podiam.

 

Após consultar um monte de “especialistas”, ou seja, amigos e familiares com as mesmas percepções e limitações, chegaram a uma conclusão: o mais aconselhável seria me mandar estudar na Inglaterra onde, na cabeça da Dona Renée, seria treinado para ter meu nome em cartazes de filmes importantes. 

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Para tanto, teria que mudar minha vida acadêmica. Este plano requereria que eu passasse os O-levels, um teste difícil que todos os meninos e meninas do Reino Unido tinham que fazer por volta dos dezesseis anos. A próxima etapa, dois anos depois, seria os A-levels, um teste mais direcionado e ainda mais puxado. Esse sim, serviria de passaporte para as universidades britânicas.

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O único estabelecimento no Rio que preparava para os O-levels não era outro, senão a mesma Escola Britânica que havia praticamente me expulsado cinco anos antes. Para os A-levels, não teria jeito, a única opção seria um internato na Inglaterra e meus pais começaram a estudar as possibilidades. 

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Voltar para a minha primeira escola era uma decisão arriscada e cara. Minha turma seria a primeira na sua história a se preparar para aquela prova. Serviríamos de cobaias e seríamos os alunos mais velhos que já teriam passado por lá.

 

Houve muitas discussões a portas fechadas, com minha mãe fantasiando sobre meu futuro de cineasta e meu pai preocupado não só com o custo, mas também com meu comprometimento e com as possibilidades nessa carreira. Isso era coisa de menino rico e ele era o único em casa a ter a ter a clareza de que nossa condição privilegiada poderia não durar para sempre. Contudo, resolveram correr o risco e voltei para a British School.

 

Espelhando o ano letivo no Reino Unido, as aulas começavam fim de agosto. Quando o momento chegou, lá estava eu, cinco anos mais velho, de novo num uniforme azul e cinza, pegando o ônibus, dessa vez sozinho, rumo ao mesmo lugar onde anos atrás tinha visto a rainha entrando de Rolls Royce. Na minha cabeça, estava começando numa estrada que acabaria com a realização do sonho de ser diretor de cinema. 

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Em poucas semanas deu para sentir que a escolha talvez não tivesse sido a melhor. A escola não era mais a mesma. Além de estar dilapidada, nosso curso era desorganizado e, apesar de serem todos estrangeiros, os professores, em sua maioria, pareciam aposentados ou donas de casa fazendo um bico.

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O ex-oficial disciplinador da marinha que cismou comigo, há muito tinha voltado para casa. O atual diretor era o esquisitíssimo Mr. Lewis, um sujeito seboso, com óculos de lentes grossas e baixinho. Parecia um ogro do Harry Potter com feições de buldogue asqueroso. Além de ter um bafo poderoso, vários tiques nervosos, era meio gago e falava com um sotaque exageradamente elegante do qual tirávamos sarro. É claro que o coitado não tinha a menor ideia de como impor respeito a adolescentes.

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No fim das contas, apesar de ser a hora errada para estudar ali, o mesmo não podia se dizer sobre quesito diversão.  Com exceção do professor de matemática, Mr. Bindley, um enorme ex-jogador de rúgbi do rústico norte da Inglaterra, ninguém era capaz de controlar nossa turma. Isso nos permitiu criar um regime de terror e fazer tudo de errado que garotos entre 14 e 16 anos são capazes. A capetagem era horrível. Enfiávamos nossas mãos não convidadas embaixo das saias das garotas, destruíamos os cadernos dos alunos certinhos no ventilador, dávamos descarga em peixinhos dourados e escapávamos da escola no horário do almoço para nos embriagar.

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Ainda que o currículo fosse o mesmo que escolas similares no Reino Unido, nem eu nem meus novos amigos, todos filhos de diplomatas e de executivos de alto escalão, jamais tiraríamos qualquer proveito daquelas aulas. No final do ano, tive que ser honesto e falar para o Rafael que ele estava jogando seu dinheiro suado fora. Com toda aquela loucura, seria necessário um esforço sobre-humano para focar no meu objetivo.

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É fácil criticar um menino privilegiado de 15 anos de idade, mas mudar de atitude radicalmente para recuperar cinco anos gastos no sistema brasileiro e passar naquela prova dificílima era uma tarefa pesada demais. Não tinha sido criado para aquele tipo de desafio. Ainda tinha isso: apesar do sonho de ser cineasta continuar vivo, depois de conversar com colegas e entender melhor a mentalidade Britânica, perdi a motivação. A ideia de deixar a vida boa do Rio de Janeiro e me mudar para a dura realidade de ser um estrangeiro num colégio interno na Inglaterra, não era nada convidativa. Lá, com certeza, os colegas e os professores fariam de tudo para colocar o novato latino americano “na linha”.

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Depois de constatado o erro, Renée e Rafael ficaram ainda mais perdidos sobre o que fazer comigo. Em meio ao caos, talvez visando me colocar de volta nos trilhos ou me fazer esquecer a carreira de cineasta, minha mãe sugeriu que aprendesse a tocar violão. Tinha levado jeito com a flauta quando criança e quem sabe na adolescência me tornasse bom nas cordas? Minhas habilidades poderiam abrir as portas da popularidade com uma turma mais positiva. Em casa já havia um violão excelente, um Del Vecchio artesanal. Era da Sarah, mas ela nunca tinha conseguido aprender. Pelo menos daquela vez, o conselho materno acabou sendo um tiro na mosca e sem conseguir levar a escola a sério, popular ou não, mergulhei fundo. Dali nasceu uma amizade que duraria para toda a vida. 

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O professor particular veio através de uma amiga de tênis. Romualdo tinha uns vinte e tantos anos, magro, testudo, óculos pesados a frente de um rosto coberto de espinhas que não combinavam com suas feições africanas. Ele parecia, e se vestia como um nerd, mas no violão era inacreditável! Ainda que um dia tivesse sido roqueiro, por motivos que desconheço, havia se convertido para o fundamentalismo da bossa nova e era isso que ensinava 

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No início não gostei. Queria tocar como Jimi Hendrix, enquanto ele só me ensinava o estilo conservador de João Gilberto. Os deveres de casa eram doloridos, tinha que me esforçar para fazer os acordes de jazz que forçavam os dedos a segurar as cordas em posições que pareciam com uma aranha. 

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Foi difícil, mas quando peguei o jeito e a mão esquerda começou a cumprir o seu papel, enquanto a direita fazia a batida do samba, a magia musical começou a sair. Daquele momento em diante, descobri não só um estado de espírito que trazia harmonia, mas também algo que amava.  É claro que a medida que o violão foi tomando um papel central no meu dia a dia, a escola e os deveres de casa foram ficando cada vez mais distantes.

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Presos como estávamos no conservadorismo da Renée, em casa só tínhamos discos de música clássica. Para avançar, precisava ter acesso aos estilos que o Romualdo estava me ensinando. Não era só bossa nova, era também o que a nova geração estava fazendo. A saída foi a biblioteca do IBEU, o Instituto Brasil-Estados Unidos. A organização tinha toda a cara de golpista, e visava estreitar as relações entre os dois países. Ela ficava num prédio perto nosso antigo apartamento em Copacabana. Além de oferecer cursos de inglês e outros serviços, tinha uma biblioteca com uma coleção fabulosa de livros e um acervo generoso de discos. 

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Além de LP's dos artistas mais óbvios: Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Ben, também havia discos de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Cartola, Elis Regina, Clementina de Jesus, Milton NascimentoOs MutantesPaulinho da Viola e novidades como Geraldo Azevedo, Alceu ValençaFagner, Walter Franco, Luiz MelodiaRaul Seixas entre muitos outros. Havia também muitos títulos de rock internacional. Apesar de não ter nada das bandas principais; Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, Pink Floyd, havia bastante coisas interessantes como The Band, Bob Dylan, Focus e Ten Years After.

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Os sócios podiam levar três discos de cada vez. Com tanta coisa para escolher e sem saber por onde começar, fui com sede ao pote. Esses sons passaram a ser uma presença constante no velho toca-discos do meu quarto e, aos poucos, fizeram meu mundo se tornar um lugar melhor.

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Aquela biblioteca era mais do que um portal para novas paisagens musicais; sua coleção de livros também ajudou a expandir meus horizontes literários. Ainda criança tinha começado com as coleções inteiras do Asterix e do Tintin. Agora, mais velho, descobri os livros. Entre eles achei os de Jorge Amado. Meu primeiro livro foi Capitães de Areia. Suas páginas descreviam um Brasil que via à distância. Como a maioria dos autores e intelectuais latino-americanos de sua geração, Jorge Amado era de esquerda, de fato comunista. Seus trabalhos mostravam como as chamadas massas eram sofisticadas e tinham vidas mais completas do que a dos novos ricos neuróticos, urbanos, moralistas e brancos. Suas estórias eram dramáticas, coloridas, cheias de sensualidade e falavam do povão com quem cruzava na rua todos os dias, mas que não conhecia. Fascinado por aquele mundo cativante que não era ensinado na escola, acabei devorando a obra inteira do escritor baiano.

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Agora envolto na enorme celebração da mistura de raças e de culturas que é o Brasil, galopei adiante dos meus pais na aventura que começaram quando resolverem mudar de continentes. Essa revelação literária me fez descobrir a Bahia pulsando no coração do país. Talvez por Salvador ter sido a primeira capital, a brasilidade era mais enraizada naquele Estado. Além de fornecer seu melhor escritor, era o Delta do Mississipi do mundo lusófono e tinha dado ao país seus músicos mais talentosos: Dorival Caymmi, João Gilberto, Gilberto Gil e Caetano Veloso, todos agora devidamente presentes no meu toca-discos, e nas cordas do meu violão. 

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Não era o único fascinado pela Bahia nos anos 1970; a abundância de praias inexploradas, os talentos da terra e a aura afro-brasileira, transformaram aquela parte do Brasil no destino preferido de hippies do país inteiro. Havia algo que emanava daquela terra que permitia com que a juventude rejeitasse o sistema de uma maneira mais verdadeira do que a estilo californiano e exclusivista acontecendo nas praias cariocas. Talvez não coincidentemente, foi por volta dessa época que o maior mestre de capoeira do seu tempo, Mestre Camisa, discípulo do lendário Mestre Bimba, chegou de Salvador e popularizou o esporte na classe média carioca. Ele começou treinando um pequeno grupo de capoeiristas, Gato, Peixinho e Garrincha, que mais tarde se tornariam eles mesmos mestres. Juntos com seu mestre, formariam o grupo Senzala. Agora separado em diferentes subgrupos, ele viria a dominar tanto o cenário brasileiro quanto o internacional da capoeira.

 

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Um dia, fuçando a caixa de surpresas musicais do IBEU deparei com um disco novo na seção de brasileiros. A capa era com um monte de hippies sorridentes posando para uma foto. Tirei ele da pilha para dar uma olhada. A contracapa era de uns pratos misturados com uns bules de café e panelas de alumínio amassado, espalhados em círculo no chão de um barraco. O título do disco era Acabou Chorare e o nome da banda era Novos Baianos. Na fase que eu estava, tudo nele parecia dizer “por favor, me leve para ouvir em casa”. 

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Quando cheguei em casa e coloquei para tocar, reconheci de imediato uma música que conhecia da rádio e que gostava muito, Preta Pretinha. Conforme fui ouvindo o resto do disco, fiquei consumido pela mistura bem-feita de rock com música brasileira e de instrumentos elétricos com instrumentos acústicos. O disco tinha harmonias e ritmos complexos que conseguiam ser cheios de vida e de malandragem. Ouvi o disco repetidamente até a hora do jantar e continuei depois. Fui dormir absorvido pela ginga lisérgica das músicas e das letras e acordei querendo mais. Foi assim que descobri o que, para mim, foi a melhor banda de todos os tempos.

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Pesquisando descobri que tal qual os poetas gregos, a banda não só cantava, mas também vivia o sonho hippie. Morando em comunidade num apartamento em Botafogo, eram as abelhas-rainhas dos doidos cariocas.

 

Junto com Milton Nascimento e seu "clube da esquina", tiveram sorte: sua presença preencheu o vazio deixado pelo exílio dos grandes nomes da música brasileira: Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Somado a isso, ainda no Brasil, João Gilberto, a expressão máxima da bossa nova, resolveu apadrinhar a banda. Trabalhando com eles, conseguiu lapidar seu talento bruto aos mais altos padrões de qualidade. 

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Contratados pela Som Livre, a gravadora das organizações Globo, preocupados com os problemas que os seus excessos no apartamento em Botafogo poderiam trazer, a produção os mudou para um sítio em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. Cientes de que o estado de espírito dos integrantes era fundamental para a qualidade do trabalho e preocupados com os problemas que os seus excessos no apartamento em Botafogo poderiam trazer, a produção os mudou para um sítio em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. Lá, passaram a dividir seu tempo jogando bola, ensaiando, criando, comendo comida vegetariana, se chapando e fazendo filhos.

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O afã daquela geração em aproveitar a vida, se distanciando da toxicidade dos caretas, podia ser resumida na pergunta que faziam em seu bem-humorado samba, Besta é Tu:

 

 

Por que não viver este mundo se não há outro mundo?” 

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Os Novos Baianos personificaram o que os hippies brasileiros foram durante a ditadura: uma força da natureza. Com uma repressão assassina à solta, a resistência tinha virado existencial, quase espiritual, daí talvez mais saudável do que a política convencional. Seu caminho buscava resistir sendo não urbano, tentando achar uma nova maneira de se relacionar com o mundo e as pessoas, tendo a cabeça aberta, mas ao mesmo tempo mantendo-se integro consigo mesmo. 

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JORGE AMADO

DORIVAL CAYMMI

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