

CAPÍTULO 20

Foto: Agencia O Globo
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“E vou cantar entre os cristais azuis do tempo e perceber
A terra longe, longe a se perder.
Sábado - Som Imaginário
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Vestibular vem do latim “vestibulum”, que significa pátio de entrada, começo. Esse significado etimológico traduzia bem o que esse concurso significava para a gente nessa fase da vida. A prova definiria nosso futuro e nosso valor para a sociedade, não era pouca coisa. E ela estava ali, esperando na esquina. Até os mais inveterados membros da “esquadrilha da fumaça” estavam preocupados. O nervosismo na escola somado à pressão em casa para justificar o dinheiro dispendido na nossa educação fez o clima ficar pesado. Havia outra questão quase metafísica que ia muito além daquela histeria de classe média: O que nos aguardava do outro lado do portal? A sensação era de que Moloch, o deus monstruoso retratado por Allen Ginsberg no seu genial poema Howl, estava ali pronto para nos revelar o capitalismo em estado bruto com seu poder de sufocar o indivíduo visceralmente. Era como se esse deus/demônio, vampiresco, impessoal, escravizador e envenenador de tudo e de todos estivesse a nossa espera exigindo uma adoração cega ao sistema.
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Éramos como bichos enjaulados, aguardando ser soltos num mundo tóxico, como animais de elite adestrados. Sangue novo num ciclo incessante, onde trocaríamos a nossa força vital por mercadorias desnecessárias. Entranhada em nossas mentes, martelava a interrogação: Como engolir a máxima arbeit macht frei – o trabalho constrói a liberdade- escrita nos portões de Auschwitz, arraigada no pensamento ocidental, reiterada em nossas cabeças por professores, mídia, filmes e, acima de tudo, por nossos pais?
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Muito longe de ser nazistas, nossos pais e professores, repetiam ansiosos a crença geral de que a única saída de escapar as crueldades do mundo era trabalhar duro para se tornar uma peça bem remunerada de Moloch. Como nas histórias de vampiros, sabíamos que ao nos tornarmos um deles, não haveria volta. Nosso destino, seria o de reproduzir centenas de gerações passadas. A verdade nua e crua era que por mais hercúleo que fosse o nosso esforço, o dinheiro ganho daí não bastaria para comprar liberdade e felicidade. Os únicos agraciados com esses atributos seriam aqueles que nunca precisariam se esforçar ou se preocupar com essas questões. Suas fortunas familiares seriam o salvo-conduto para uma tranquilidade merecida por todos, independentemente de onde estivessem na cadeia econômica.
Num país onde o acesso às universidades era um luxo de poucos, nossas reticencias eram o fruto de uma mistura sofisticada de educação, de tempo disponível para ler e refletir e de sensibilidade. Detentores desse privilégio maldito, entendíamos a máquina. Ela estava ali nos espreitando, sólida, impassível, pronta para cravar-nos suas garras afiadas, assim que ingressássemos no mercado de trabalho. O vestibular não era a parada final, como bem define a etimologia: era o portal de entrada. Isso se fôssemos aprovados. Se não passássemos, a rejeição e a humilhação da inépcia para servir o inescapável Moloch seria deplorável.
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